É possível encontrar algum sentido ao olhar para os massacres que desolam com luto e lágrimas o início de 2023? E mais, é possível achar alguma esperança em uma genealogia? Pressuposto um: não é algo local. Por mais que existam causas pontuais, as articulações são globais. Não é por acaso que estejam acontecendo em diferentes lugares, guardadas as especificidades de cada caso. Portanto, trata-se de uma crise política, social, comunitária.
Pressuposto dois: a gênese está nos discursos. Primeiro se autorizam os discursos. O ódio passa a ser dito; permitido; praticado. É bem neste ponto que a liberdade de expressão se torna uma inimiga íntima da democracia. Pois nada parece tão legítimo que o direito de ser livre para expressar opiniões. Essa falácia é tão forte quanto perversa.
Pressuposto três: discursos de ódio são graves, potentes e eficientes. Passa a ser normal dizer barbaridades, e, depois, não estranhamente, passa a ser normal praticá-las. Genocídios, holocaustos, ataques extremistas e massacres, historicamente, demarcam com sangue aquilo que começa com fala. A potência dos dizeres não é uma mera gripezinha, porque tem na sua natureza a força de se tornar pandêmica. Nossos tempos trazem ainda um agravante, vivemos em grandes redes de comunicação, de tal modo que as falas viralizam com uma rapidez generalizada.
Mas, e agora, José… Foucault, Pêcheux, Todorov? Voltemos à gênese. Se há uma origem que passa pelos discursos, só nos resta trabalhar com o que temos.
O combate aos discursos de ódio é uma ação ambígua, e, por isso mesmo, pode trazer resultados controversos. Não podemos nos enveredar em uma guerra que ataque por meio do policiamento das palavras. Passou da hora de entender que o “politicamente correto” gerou mais revanchismo que paz. Quanto mais se tentou controlar, mais se produziu e se permitiu o ódio, como um danoso efeito colateral.
Superar o ressentimento é um nível de maturidade que a democracia precisa atingir. Temos que agir emergencialmente na produção de novos discursos, pois apenas discursos de coletividade, de respeito e de acolhimento serão capazes de afetar novos discursos, assumindo proporção escalonável a ponto de produzir em rede uma renovação política dos dizeres. O maior movimento revolucionário da história universal começou pela palavra. O verbo encarnado foi morto, mas seus enunciados ecoam vivos, como antídoto nas bocas, nos gestos e nas ações.